Mal consigo lembrar-te:
aquele homem
de chapéu e de fato incompreensíveis
e a careca que tenho.
Não me vem à memória mais que a imagem
de um velho elegante no sofá da casa
de meus tios:
um homem alto, dignamente assentado
nos seus noventa anos. Tinhas
aquela idade e um sorriso
que para si queriam as crianças.
Mas mal consigo lembrar-te.
Imagino-te a vida
de olhada alegre e incisiva.
Talvez seja um recordo reflectido
nas pregas da cara de meu pai
que falam de ti.
Sofreste mas não soube. Papá
contou-me anos depois dos ideais políticos.
Da padaria ao mundo havia um passo
que não hesitaste em pedalar.
Deveste rolar muito de fato e bicicleta.
Lembro sim quando morreste: havia
uns bons meses que não ia visitar-te
e a notícia caiu como uma lousa.
Não fiquei triste por ti, mas por um fim
de semana perdido num enterro:
fervilhava-me a vida na cabeça
e faltava-me perspectiva.
Agora és-me só um recordo vago.
Quando penso em ti vem-me à memória
o espaço diáfano do lar de dia
a que ias jogar dominó.
E reconheço nas caras da família
a tua cara de alegria
quando há alegria.
Mais nada.
Que ferida
me tens deixado é um mistério.
Mas receio que um dia hei de encontrá-la
ao me apalpar a pele escorregadia
da cabeça sem pêlos.