se a história é aquilo que os livros guardam
porque a memória não chega
e se todas e todos nós carregamos a história
que é nossa muito além da memória consciente
e se a memória é seletiva
e todo o mundo sabe
que a memória é seletiva
que nos esconde o que dói
o que doeu
e nos abraça aos fantasmas
das vitórias
se somos
este corpo que somos
porque outros corpos foram antes
mortos ou torturados
e essa memória for expulsa
do que lembramos
então quem matou
ou torturou
ainda decide por nós quem é que somos
molda a memória da nossa história
o nó da rede que une este corpo
ao universo inteiro
deita abaixo a ponte
da ilha que somos
afunda os barcos
como afundou cadáveres
e é por isso
porque somos o mundo todo
nesta ilha
que é tempo de abraçarmos a dor
como abraçamos irmãos, pais e família
tempo de desenhar no espaço
deste papel de estraza
o nosso governo revolucionário
numa taberna
de nos vermos nos espelho da história
como nos vemos no espelho do mar em calma
a nossa vitória será
sermos quem somos
pequenas formigas que construímos mundos
a ela
- que está por vir -
é que me abraço
Este espaço
no mundo
é uma cantiga.
Esta cantiga
cresce no ritmo
das raízes.
Estas raízes
imitam formas
do coração.
Nada lhes peças.
Nada lhes dês.
Nada ofereças.
Tu
que és o espaço
a cantiga
as raízes
o coração
recolhe dignamente o que te deram,
e reverencia em ti a sua herança.
Agradece o que és porque te amas,
mas não te ames com os modos,
a intensidade dum adolescente apaixonado.
Antes abraça-te no teu abraço
com firmeza e rigor,
mas com cuidado,
como a amassar os músculos dum corpo velho.
Tu és os fios da memória antiga
a tecer-se nas mãos que se entrelaçam.
Não te enganes a pensar que é uma bandeira.
Que o coração
bombeie sangue
das raízes.
Que as raízes
marquem o ritmo
das cantigas.
Que essas cantigas
criem o espaço
do teu mundo.
Costumava estar fascinado por como Ted Hughes retrata a beleza, misturada com a violência. Também me fascinava a facilidade para retratar a agressão, como impulso vital destrutivo para a sobrevivência. O Eros e o Tânatos. Acho que a fascinação nascia da minha incapacidade patológica para a agressividade.
Ontem publiquei neste blog o primeiro poema do primeiro livro de Hughes, em que narra como dá um tiro a uma magestosa águia. O seu primeiro poema será o meu último. Até aqui, Mr. Hughes. Obrigado por abrir-me os olhos ao contínuo vida-morte, mas há mais maneiras de vivê-lo, e tu és um puto animal.