Devia de ter eu os meus cinco ou seis anos. Naquela época os meus pais deixavam-me ficar em casa dos meus avós durante longas temporadas no verão, num tempo que eu desfrutava entre o mar e a pouca terra da Arousa, que parecia infinita sob os meus pés. Passava o tempo com amigos ou simplesmente seguindo o meu avô Francisco, o Samaro, nas suas caminhadas. Às vezes levava-me com ele pescar chopos, ou à batea, onde eu ficava maravilhado com a força infinita das suas mãos e braços, capazes de levantar cordas de ostras em peso.
As manhãs eram normalmente para passar o tempo em Pedra Serrada. Em casa dos meus avós, eu brincava com o cão, subia à figueira, ou acompanhava Francisco a fazer todo o tipo de trabalhos, de plantar ou colher batatas e milho a arranjar objetos trabalhando madeira. A minha avó, entretanto, limpava ou cozinhava dentro de casa, e não me queria lá dentro. Ela também plantava e colhia quando era o tempo, mas o que ela mais gostava era de falar com a vizinhança. A casa tinha um caminho que unia Pedra Serrada com a rua do cemitério, e ainda que era privado, era constantemente transido por pessoas que saudavam e davam uma conversa que a minha avó adorava. Por ali falava-se de tudo o que acontecia na Ilha, e dava-se opinião velada sobre a vida de todo o mundo. O meu avô, no entanto, gostava de estar sozinho, com o cão, e trabalhar com as mãos ou caminhar. E falava também com os vizinhos, é claro, mas assim que podia saía de casa para caminhar em silêncio.
Na parte de trás da casa, que agora já é parte de diante, tinham os meus avós um galinheiro. Eu não gostava muito das pitas, que achava bastante aborrecidas, ainda que me emocionava cada vez que encontrava um ovo por baixo do poleiro. Acho que era a minha avó que lidava mais com elas, e foi ela que descobriu nalguma ocasião que os pardais andavam a comer o grão. Depois de um tempo, decidiram pôr uma rede ao grande oco que as reixas deixavam pela parte de cima, e lá ficavam presos os pardais cada vez que tentavam chegar-se a comer.
A partir daí, o galinheiro ganhou interesse para mim. Subido à figueira, onde gostava de passar a maior parte do tempo, estava atento sempre por se nalguma ocasião caía um pardal. Quando acontecia, corria a buscar o meu avô, que, com aquelas mãos grandes, agarrava o pardal com cuidado e baixava-o para que eu visse de perto como era. Às vezes permitia-me segurá-lo eu próprio, mas sempre, sempre, o pardal voltava a ser ceivo.
Numa ocasião que o meu avô não estava em casa, vi de cima da figueira um pardal na rede, e fui correndo buscar a minha avó. Ela veio logo para fora, e descobriu que lá não havia um pardal, mas dois, e perante os meus olhos, apanhou-os um a um e retorceu-lhes o pescoço. Mentiria se dissesse que aquilo me resultou violento, mas evidentemente chocou-me a diferença na forma de agir. Por isso lhe perguntei:
Aquele dia a minha avó comeu um pardal e eu o outro, enquanto o meu avô engolia um grande prato de arroz com qualquer coisa. Eu gostei do sabor do passarinho, ainda que me resultou muito difícil de comer, porque havia muitos ossos e pouca carne. Mesmo assim o meu veredito era claro: o passarinho sabia bem.
Dias depois, estando eu brincando outra vez na figueira, enquanto o meu avô trabalhava no alboio, um novo pardal caiu na rede. A minha avó devia ter ido à vila para qualquer coisa, porque lembro que não estava em casa. Como era habitual, corri a buscar o meu avô, e ele veio e agarrou-o nas suas mãos enormes. Mas desta vez eu não tinha tanto interesse em ver o passarinho:
O meu avô ficou paralisado.
Então o meu avô Francisco, o Samaro, retorceu a cabeça do pardal com suas mãos enormes. Enquanto o fazia, o seu rosto desfigurou-se e as lágrimas saltaram-lhe nos olhos. Eu olhei para aquilo estupefacto e, ao pouco tempo, era eu quem chorava desconsoladamente. Então o meu avô disse-me algo irritado entre as suas próprias lágrimas:
E eu voltei a chorar ainda com mais força, porque era verdade.
as tuas fotos vêm comigo
de casa em casa
de escuro a escuro
esconderijo
nelas estás nua
e nelas
estamos nós
há tanto tempo
nus
tu tão bonita
eu
tão tristemente homem
aquela miúda que ficou comigo
no papel fotográfico
e na memória
também ficou na vida
às vezes penso como pude
conseguir que me amasse
tanta beleza
é claro que não pude
é um mistério de esfinge que me ames
como o teu corpo que produz orgasmos
no teu umbigo remoinham-se arrepios
da minha pele
xiqueta que sempre foste
e és
falta-me tantas vezes o teu corpo breve
quase apagado nos meus braços
os teus peitos que não se apartam dos meus olhos
o teu sexo
que consegue engolir-me inteiro apenas por um apêndice
hoje escrevo estas palavras na distância
amanhã
terei contigo
então verei a prova da constância
desta mente de mono enlouquecido
e oxalá possa abraçar-te intensamente
e aguentar no sofá durante horas
as séries de que gostas
e oxalá o teu cabelo não me moleste no nariz
e possa abraçar-te deitadinhos
tentando acalmar-te quanto possa
as dores menstruais
mas entretanto
estás aqui
nos meus dedos
feita papel
e cores
deusa dos meus instintos
senhora dos meus pecados
menina e moça desse olhar malandro
que me desperta ao coração do mundo
Este é o corpo real.
A nuvem louca.
A sensação eterna de queda
haja ou não haja queda.
O fluxo cego que gravita em torno à gorja.
Este é o corpo real
e do real.
O remoinho
de sensações em torno ao estômago.
Estômago o centro do mundo
digerindo
pedras nas tripas.
A segurança
do ar.
O vento.