És um recordo errante,
o corpo da memória das gerações passadas
feito fotografia
verso
e verso.
A sombra que me persegue desde o momento
em que juntei palavra com palavra.
Talvez a nascente
de que emana a sede de expressão
de tantos,
ou então o primeiro em conseguir dar forma
à necessidade íntima de muitos.
Nunca te conheci
mas estiveste sempre a acompanhar-me.
E ainda que nos teus versos não transpareça
uma única olhada para dentro,
estás
nos risos, esses, muitos,
que ainda que não pareça também tenho.
Quero falar de ti
e há tanta cousa pra dizer,
poeta da tribo,
jornalista,
taberneiro,
versificador social-
-ista,
Ministro de Informação e Propaganda
do Governo Revolucionário Independente
da Ilha de Arousa,
compositor mordaz,
anticlerical,
antifascista,
revolucionário.
Tu transformaste o Nicho
em taberna,
e intuo que estás ainda
a servir vinho e comentar a vida
ou a morte,
ou o jogo do Celta,
que talvez seja as duas cousas.
Deste lado do tempo só és um recordo
dum recordo doutro recordo.
E por isso este poema não é
a homenagem que mereces
e que ainda espera.
Apenas umas palavras para dizer
que foste vivo
e a tua vida
é um pouco a minha
ou nossa,
e que as tuas palavras,
ainda que muitas se perdessem,
pesam.
de tanto ver-te ao espelho
já ninguém
se refletia no teu rosto
morreste para ti
voltada em ti
como um rio que tenta despenhar-se
na sua nascente
e no entanto
quanta corrente nos deixaste
ninguém quer ver-se em ti
mas são as tuas águas que nos levam
e somos
o rio de narciso
que não segura a imagem mas dissolve e empurra
a sua fome
que alimenta o amor
que se transforma em pão
que se torna fome
águas que preferimos ignorar
mas somos
morreste para ti com um sorriso
deixaste atrás a fome
atravessaste o espelho
já ninguém se reflete no teu rosto
mas hoje vejo em ti a matéria viva
que escondem os desejos
porque na morte todos somos
espelhos
e tu já és a luz que se reflete
às vezes sonho contigo
filha
que nunca tive
transitas um desejo
dos sonhos para abraçar-me
sinto calor no corpo dos sentidos
somos felizes e depois acordo
é tão duro perder-te num abrir de olhos
filha
de vento e lágrimas
que a luz se torna a lápide do dia
recolho o sal nos olhos
levanto-me na carne feita vida
guardo as palavras que nunca te direi
num poema que nunca se lerá
e vou para o dia ainda a sentir-me
pai
do vento
da luz
da lágrima
da vida