aqui e ali o incenso que se entranha na consciência do cheiro
as ondas no ventre levemente moles
a saliva na língua que lambe os dentes por dentro
cá dentro os chilreios dos passarinhos lá fora
- ou os passarinhos lá dentro ou nem dentro nem fora -
e o ruído dos carros longe cá no peito que sente
alguma dor ou nenhuma ou apenas as penas
sem um contexto ou causa apenas isto
a cor castanha clara do soalho da sala
confusamente refletida nos olhos
nebulosamente
nevoeiromente
mentemente
porque a mente mente
mas quem sou eu?
esta consciência que respira e não abarca o tempo
chega até às portas daquilo que se percebe
- -será que sou
a sensação de leveza das gemas dos polegares que se tocam
ou a firmeza do corpo apoiado no períneo?
serei o ar que entra ou o que sai?
e será que são ares diferentes?
serei o espelho do oceano em calma
ou a espuma da onda a centelhar na crista?
serei o espelho da partícula da espuma
ou o espelho do meu quarto a que não limpei o pó?
pairam no ar chilreios a sensação do corpo e a memória
inspiro o ar e espiro os pensamentos que se cruzam
a construir em mim um tu que observa esta existência que abarca
o que entra pela porta invisível mas que não te delimita
serei eu tu?
mas quem és tu?
quem que aprendeu a velear e até a tocar piano?
quem que põe o mandilão de capa
que segura o cigarro na mão que faz sonetos?
quem que vê as intervius de papá no falho?
- (quem é papá? quem é mamá? quem será o filho do filho?)
quem és que sobes à figueira para brincar de arqueiro
ou revolucionário em Santiago?
quem que foste ao mosteiro budista e não aprendeste nada
porque as perguntas crescem?
quem que respira o pó em partículas suspendidas no ambiente
e volta a sentir a gorja transitada de espaço?
se vês o espelho vejo um espelho que se vê no espelho
se deito a vista atrás e deito a vista atrás aonde
me vão os olhos que me olham?
como uma forma de nuvem que agora está e desaparece
existo em ti que não existes
visão quimérica que nunca foste
mas afinal quem vê?
quem é visto?
quem vê quem é visto?
quem vê quem vê quem é visto?
quem vê quem vê quem vê quem é visto?
continuo?
seguro a mão que segura a mão segura
aparto com um sopro o interrogante
e volto a respirar
(volto a ser respirado)
que escreve esta criança na carteira da escola?
que escreve esta criança no seu gabinete para fazer memória?
que contas faz de cabeça?
a contabilidade infinita dos anos até setenta
soma a tropa e os filmes
as associações de vizinhos e os partidos
o futebol e as fábricas de conserva
o carnaval, a tasca, o concelho
a padaria, a pensão de sara e a vida na alemanha
as horas de carro e a geografia inteira do mundo
a tua vida não cabe na memória
e no entanto mira esta foto
passaram os anos e ainda não se sabe
se a olhada é decidida e incisiva
ou simplesmente míope e forçada
és uma esfinge sui generis sem dúvida
mas vejo-te na carteira e não te distingo deste pai que tenho
passou o tempo
e pouco mais
os óculos abriram-te os olhos
e o cabelo abandonou a cabeça
aprendeste da vida mais que livros
e agora
o teu sorriso é como um livro aberto
que atravessa gerações e anos
homem pequeno
menino grande
avô
filho de alfonso que faz empadas em casa
sobrinho de juanito que escreve as crónicas da vida
o tempo não passou
está passando
escorre entre os dedos que pulsam teclas no computador
passa entre as mãos que tentam agarrá-lo com palavras
esvai-se como o mundo inteiro quando tiramos os óculos
o tempo é pouco e nunca para
igual que tu
resta-nos tanto mar por engolir
amigo
tanta verdade de sangue descarnada
tanta brecha que coser
e velear à sua margem
resta-nos tanto mar por engolir
vemo-lo desta praia de pedrinhas e cunchas
que o tempo desfez
antes eram os cons de semuinho
ou o com de três pés
ou a punta cavalo
mas o farol fez-se areia
e como a areia
continuamos mareados
o tempo fez-se idade
embarcados nesta distância que nos une
esta dorna que é um presente de gerações e anos
dalguma maneira conseguimos viver sem recordar-nos
surpreende-nos um dia
o piano esquecido cujo pedal deixa ainda reverberar sakuras
ou um disco de tangos
e todos os recordos são presentes do passado
o tempo
vemo-lo agora
fez-se idade
o tempo
que será história
de nós
talvez nada se salve na memória
de todos
talvez lembranças baças ou só nomes em livros
que ninguém leia
- e se os lessem, sejamos sérios, o que leriam? -
talvez nada tenhamos feito quando o vento da história nos sobarde a nos rebentar a vela
talvez engulamos o mar de vaga em vaga
talvez não possamos mais coser a brecha
talvez só fique de nós esta verdade de sangue
nem somos nem seremos nada
mas ao enfrentar a morte
como a enfrentamos agora nestes versos
flutua ainda no mar uma certeza
que cada vento
que alguma vez navegámos juntos nesta dorna
foi para o mundo ser melhor
agora