Em Jerusalém, e quero dizer dentro dos antigos muros,
caminho duma época para a outra sem uma memória
que me guie. Lá estão os profetas a compartilhar
a história do sagrado… ascendendo ao céu
e voltando menos desiludidos e melancólicos, porque o amor
e a paz são sagrados e estão a caminho.
Estava a descer uma encosta e pensava para mim: como podem
os que contaram a história divergir sobre o que a luz disse à rocha?
É sobre uma rocha levemente iluminada que começam as guerras?
Caminho no meu sonho. Olho fixamente no meu sonho. Não vejo
ninguém atrás de mim. Não vejo ninguém à minha frente.
Toda esta luz é para mim. Caminho. Torno-me leve. Voo
e então torno-me outro. Transfigurado. Palavras
nascem como a erva da boca do mensageiro
de Isaias: “Se não acreditares, não serás salvo”
Caminho como se fosse outrem. E a minha ferida uma branca
rosa bíblica. E as minhas mãos como dois pombos
sobre a cruz, passando por cima e levantando a Terra.
Não caminho, voo, torno-me outro,
transfigurado. Sem lugar e sem tempo. Quem sou eu?
Eu não sou eu nenhum na presença da Ascensão. Mas eu
penso para mim: Sozinho, o profeta Maomé
falava árabe clássico. “E depois?”
E depois? Uma mulher soldado gritou-me
Outra vez tu? Não te tinha matado já?
E eu respondi: mataste-me... mas eu, como tu, esqueci morrer.
Aqui, na ladeira da montanha, enfrentando o crepúsculo e o canhão do tempo
perto dos jardins das sombras rotas,
fazemos o que fazem os prisioneiros
e o que fazem os desempregados:
cultivamos esperança.
***
Um país a preparar-se para o amanhecer. Emparvecemos
por vermos próxima a hora da vitória:
não há noite na nossa noite iluminada pelo bombardeio
os nossos inimigos são cautelosos e acendem luzes para nós
na escuridão dos porões.
***
Aqui não existe o “eu”.
Aqui Adão lembra a poeira do seu barro.
***
No limiar da morte, ele diz
não me restam traços que perder:
livre sou eu, tão próximo da minha libertação. O meu futuro está nas minhas mãos,
logo entrarei na vida
nascerei livre e sem pais
e escolherei para o meu nome letras do azul do céu...
***
Tu que estás no limiar da porta, entra,
bebe café arábico connosco
e sentirás que és um homem como nós
Tu que costumas estar no limar das portas das casas
sai das nossas manhãs
sentir-nos-emos certos de ser
homens como tu.
***
Quando os aviões desaparecem, os brancos, brancos pombos
esvoaçam e limpam as faces do céu
Com asas livres trazem de volta o brilho, tomando posse
do éter e da peça. Mais alto, ainda mais alto, os brancos, brancos pombos
esvoaçam. Ah, se pelo menos o céu
fosse verdade [disse-me um homem a passar entre bomba e bomba]
***
Os ciprestes por trás dos soldados, minaretes protegendo
o céu do colapso. Além da grade de aço
mijam soldados – sob o olhar vigilante de um tanque –
e o dia de outono acaba o seu passeio dourado numa
rua tão ampla como uma igreja depois da missa de domingo...
***
[A um assassino] Se tivesses contemplado a cara da vítima,
se tivesses pensado bem, terias lembrado da tua mãe na
câmara de gás, ter-te-ias visto libertado da razão do rifle
e terias mudado de opinião: esta não é maneira
de reencontrar a própria identidade.
***
O estado de sítio é um tempo de espera
uma espera no escadote inclinado no meio da tormenta
***
Sós, a nossa solidão é tão funda como os sedimentos
a não ser pela visita do arco da velha.
***
Temos irmãos além deste vasto espaço.
Magníficos irmãos. Amam-nos. Olham para nós e choram.
Então, em segredo, dizem-se uns aos outros:
“Ah, se este sítio tivesse sido declarado…” Não acabam a frase:
“Não nos abandonem, não dos deixem.”
***
As nossas baixas: entre dois e oito mártires por dia.
E dez feridos.
E vinte casas.
E cinquenta oliveiras…
E somado a isto, o problema estrutural que
chegará no poema, na peça de teatro, e na pintura inacabada.
***
Uma mulher disse à nuvem: cobre o meu amado
que a minha roupa está banhada do seu sangue.
***
Se não fores chuva, meu amor
sê árvore
saciado de fertilidade, sê árvore
Se não fores árvore, meu amor
sê pedra
saturada de humidade, sê pedra
Se não fores pedra, meu amor
sê lua
no sonho da mulher amada, sê lua
[Assim falou uma mulher
no funeral do seu filho]
***
Oh, vigias! Não estão exaustos
de esperar pela luz do nosso sal
e pelo fulgor da rosa na nossa ferida?
Não estão exaustos, oh vigias?
***
Um bocado desta infinitude azul e absoluta
seria suficiente
para fazer mais leve o peso destes tempos
e para limpar a lama deste lugar.
***
A alma é capaz de descer da cavalgadura
e nos seus pés de seda caminhar
ao meu lado, mão na mão, como dois amigos
de há tempo, que compartilham o pão de antanho
e o antigo copo de vinho
Possamos nós fazer este caminho juntos
e os nossos dias divergirão depois:
eu, mais além da natureza, por minha vez
escolherei pôr-me de cócoras no alto de um rochedo.
***
Nos meus cascalhos a sombra é verde
e o lobo dormita na pele da minha cabra
sonha como eu, como o anjo,
que a vida é aqui… e não lá fora.
***
No estado de sítio, o tempo torna-se espaço
petrificado na sua eternidade
No estado de sítio, o espaço torna-se tempo
que perdeu o seu ontem e o seu amanhã
***
O mártir está à minha volta a cada novo dia
e pergunta-me: Onde estavas? Devolve aos dicionários
cada palavra que me deste
e liberta os dormentes do zunido do eco
***
O mártir esclarece-me: mais além da vastidão
eu não procurei
as virgens da imortalidade porque amo a vida
na terra, entre as figueiras e os pinheiros,
mas não posso atingi-la, e então apontei também para ela
com a minha última posse: o sangue no corpo do azul do céu.
***
O mártir avisou-me: não acredites nas suas lamentações
acredita no meu pai quando, chorando, olha a minha fotografia
Como é que trocamos os papéis, meu filho, como é que foste à minha frente.
Eu primeiro, eu o primeiro!
***
O mártir está à minha volta: o meu lugar e a mobília tosca é tudo o que mudei
ponho uma gazela na minha cama
e um crescente de lua no meu dedo
para sobrelevar a minha dor.
***
Este assédio durará até convencer-nos de que devemos escolher, em plena liberdade, a escravidão que não magoa!
***
Resistir significa garantir-se a saúde do coração,
a saúde dos testículos e da tenaz doença:
o mal da esperança.
***
E no que resta do amanhecer, caminho em direção ao meu exterior
E no que resta da noite, ouço o ruído de passos dentro de mim
***
Cumprimentos para aquele que compartilha comigo uma atenção para
a embriaguez de luz, a luz da borboleta, na
negridão deste túnel!
***
Cumprimentos para aquele que compartilha comigo o copo
na densidão duma noite que flanqueia os dois espaços:
Cumprimentos para o meu fantasma.
***
Os meus amigos estão sempre a preparar-me um banquete de despedida,
uma lápide plácida à sombra dos carvalhos
um epitáfio marmóreo de tempo
e sempre os imagino no funeral:
Então quem morreu… quem?
***
Escrever é um cãozinho que morde no nada
Escrever cicatriza sem um rasto de sangue
***
As nossas chávenas de café. Pássaros verdes árvores
no para-sol azul, o sol dá saltos dum muro
para outro, como uma gazela
a água nas nuvens tem a forma ilimitada do que nos resta
do céu, e outras coisas de memórias suspensas
revelam como esta manhã é poderosa e esplêndida,
e como somos os convidados da eternidade.
(Mahmoud Darwish)